terça-feira, 1 de setembro de 2009

Andando na Noite

A João do Rio e a Márcio-André
poetas andantes


Andando na noite, pelas ruas do centro, com o jornalista Antônio, percebi como se diferem as ruas quando no negrume e quando na claridade. Certas ruas até mesmo na manhã são o que são na noite, outras são estranhas de si mesmas já antes mesmo da noite, já um pouco antes do ocaso. Por exemplo, o que tem a Rua do Ouvidor da manhã que ver com aquela percorrida na noite? Não falo bem da alternância das pessoas que a freqüentam, ou do clima humano propriamente, mas de como a rua por si parece deixar que esse clima se transforme. Ninguém saberia por que, certos dias, essa rua nos afugenta fatigados de uma manhã pedregosa e, quando na noite que dá seqüência ao incômodo, é capaz de nos acolher tão bem sobre as mesmas pedras. Digo isso ainda que nós estejamos constantes na disposição do espírito. A verdade é que, por mais de uma vez passando por ali, não me dei conta de que estava na Ouvidor até que algo de fora, da rua, provocasse meu ânimo e o afinasse tão bem ao seu, como se me tocasse. Pois, nesses momentos, era a rua que me atravessava e não eu que atravessava a rua. Aliás, com o tempo, soube que somente podia atravessá-la nesta condição: em tendo sido atravessado por ela primeiro. Depois dessa imbricação de travessias, ela me aparecia em todo seu brilho e evocação. Questiono-me, sob o domínio dessa experiência, se não é isso que ocorre em verdade com todas as ruas.

A pergunta que me surge e compartilho com todos para salvar essa tese é: não são as ruas que permitem e orientam a travessia humana na cidade ou mesmo se cá ou lá, em sua metragem, podemos nos assentar e conversar no banco ou no bar? E também onde, afinal, nos deixam - sob sua guarda - fixar nossa boemia? É-me permitido responder algo após tanto pensá-las nos meus pés (ou elas se pensarem por eles). Respondo que, ainda muito mais que a atravessá-las, somos convocados e orientados por elas a deitarmos ou não, aqui ou ali, nossa morada. Isso encerra, na verdade, uma questão muito mais radical, pois são as ruas que determinam onde devemos morar, de acordo com a concessão que fazem às casas, sendo necessário que essas sejam por aquelas admitidas antes mesmo de nos decidirmos onde iremos ficar. Passeemos um pouco pela cidade e admitamos que são as ruas que nos constroem as casas e nos permitem fazer-lhes moradia. Por certo, perceberemos que não são as casas, pelo nosso desejo citadino, que ambientam as ruas, forçando-as ao que não são, pois muito antes disso foram as ruas que as acolheram ao seu modo de ser. As casas são apenas as manifestações e concretizações das ruas na sua tarefa de aparecer. A rua na sua missão de aparecer arquiteta suas casas e vãos. Quando habitamos as casas, passamos a ter participação efetiva na alma da rua que nos aceitou, porque de muito antes nossa alma já ali habitava e, certamente, só nos faltava a escuta de um convite seu, ou um encontro. Assim estou certo de que as ruas não são uma conseqüência da cidade, nem um acidente entre edifícios, senão o que permite de fato a cidade existir. As almas das ruas incorporam as cidades, as cidades são os corpos das ruas, as ruas é que habitam no homem.

Ronaldo Ferrito, 28/03/209

RONALDO FERRITO é poeta, ensaísta e um dos editores da Confraria do Vento, revista de Textos Literários da qual também é colunista. Participou de algumas antologias de contos e poemas, como a Asas e Vôos (Guemanisse, 2006) e publica com freqüência em outras revistas eletrônicas.

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